À entrada de Vila-Viçosa, sobre a porta chamada do «Nó», erguida por D. João IV para comemorar a sua aclamação em 1640, insculpe-se em duas almofadas de mármore uma inscrição misteriosa, que encerra consigo o segredo de todo o esforço admirável da nossa Restauração. Reza essa inscrição no seu latim doutíssimo, lembrado talvez ainda dos acentos puristas de mestre André de Rezende:
HOEC EST FATALIS
NODORUM PORTA.
JOANNES
ME NODO HESPERIOE
LIBERAT ENSE POTENS
SOLVIT ALEXANDER
NODUM UT REX IM-
PERET ORBI
REX MEUS UT REGIS
SCEPTRA LATENTIS
AGAT.
ANNO 1654.
Eis agora a tradução, segundo as melhores autoridades: - «Esta é a fatal porta dos nós. João poderoso, livra-me com a espada do nó da Espanha. Desfaz Alexandre o nó para imperar como rei na redondeza da terra: o meu rei o desata para empunhar os ceptros do Rei encoberto. Ano de 1654.»
Como monumento público à crença nacional na vinda do Desejado, não conheço outro mais expressivo. Na equilibrada dicção do epigrafista palpita, com verdade, a flama profunda que animou a resistência da alma colectiva contra a tentativa absorcionista de Castela. As iluminações proféticas do Padre António Vieira, as mil esperanças anónimas espalhadas no povo, ainda o elevado sentido duma predestinação mística, conferida por Deus a Portugal, em que vibram unânimes as peças jurídicas com que diante das cortes estrangeiras os nossos diplomatas e tratatdistas defenderam o direito da nossa nacionalidade à sua independência - nada, em resumo, é comparável à lápide comemorativa de Vila-Viçosa.
(...)
Por ela, o próprio Estado confessava a legitimidade do Sebastianismo, por ela o próprio monarca se tinha como herdeiro dos ceptros do Encoberto, sceptra Regis latentis. Na singeleza daquelas tantas parelhas latinas se condensa a história toda do profundo movimento nativista que no século XVII nos levantou em massa, como um só homem, perante o espectro, indubitavelmente temeroso, da monarquia do Escorial [dos Habsburgo]. Interpretá-la é refazer a psicologia dos bons avós de Seiscentos que, por meio da espada e da pena, abriram outra vez lugar a Portugal no concerto das nações europeias. Consola-nos, como prova do vigor da raça, recordar semelhante epopeia, tão desvirtuada pelas diatribes romântico-revolucionárias dos nossos historiadores, que, ao abordarem o assunto, apenas escutam a voz do seu ódio à Companhia de Jesus e à dinastia de Bragança.”
pp. 250-251.
[D. António prior do Crato] “Não se vendeu a Filipe, porque, subindo sempre de ambição, ia subindo sempre de preço. A sua índole, - a natureza dos seus sentimentos, mostrava-se de tal modo que, tendo sido seu mestre o virtuoso D. Frei Bartolomeu dos Mártires, nós sabemos com que afinco o prelado se opôs a que o proclamassem rei em Braga, - na sua cidade arqui-episcopal. De resto, já Rebelo da Silva, sem maior conhecimento da documentação existente nos fundos diplomáticos do país vizinho, nos deixa entrever a doblez do bastardo do infante D. Luís.”
pp. 262-263
“Cingindo (…) a coroa por uma catástrofe sem igual na nossa história, o Cardeal-Rei [Cardeal D. Henrique] sufocou a sua preferência pela duquesa D. Catarina, olhando à desgraça em que Portugal se encontrava, totalmente incapacitado de resistência diante do colosso espanhol. À roda dum trono prestes a vagar, fervia a intriga, enquanto a miséria aumentava no Estado e na colectividade.”
p. 263
“Mal a vida se lhe extinguiu [Cardeal-Rei D. Henrique], o torpel dos vivos cresceu de violência. Em Portugal, essa hora de alucinação colectiva não achou ainda o seu verdadeiro historiador. (…) Reputo mesmo um vastíssimo serviço prestado ao futuro de Portugal a revisão escrupulosa de tão acidentada época histórica. Ela nos manterá, por um lado, na fé imperecedora de que a raça portuguesa se retempera e redime na desgraça e, por outro, na certeza não menos fortificante de que de forma alguma caímos no cativeiro ou na escravidão, ao transitar para as mãos da dinastia filipina o ceptro de Afonso Henriques. Se perdíamos «rei natural», a culpa não era só da ambição de Filipe. Colhiam-se as consequências da política peninsular da casa de Avis, que, em seguida à nossa consolidação em Aljubarrota, sonhou com a coroa unida de Portugal e Castela. Fala-se a todo o momento dum “perigo espanhol”. Mas ninguém se lembra de que houve também para com Castela, um “perigo português”!
pp. 265-266
“Já no crepúsculo, a ideia universal de Cristandade recebia com a separação de Portugal o seu golpe de morte. Baseada no consenso unânime de «Respublica-Cristiana», a Europa vivera em sociedade internacional, debaixo do patrocínio augusto de Roma, até que o cisma de Lutero rasgou sacrilegamente a túnica sem costura de Jesus. Embora dentro do grémio da Igreja, a França alia-se ao Turco contra Carlos V, pondo em ameaça os destinos da fé e da civilização. Conjugada por parentesco e identidade de vistas políticas aos desígnios do império austríaco, a Espanha filipina assume então na Europa o papel grandioso de refazer a Cristandade despedaçada. (…)
"Mas o individualismo ia vencer tanto no instinto das nações como nas directrizes dos Estados. Enquanto o sábio paralelismo da centúria de Quinhentos se manteve de pé afiançado pela colaboração espontânea dos dois reinos amigos, a vocação da Península no mundo pôde cumprir-se. Agora que as duas metades se voltavam em adversárias irreconciliáveis, a Península teria que sucumbir necessariamente à conspiração que a Europa inteira urdia contra ela. Outro não é o sentido patético de D. Quijote, batendo-se dramaticamente por sonhos e aspirações que ninguém já quer – que ninguém já entende! O desastre consuma-se por fim em Westefália. Ali o Papado, como pacificadora força de coordenação política, desaparece por completo na sombra. Com ele desaparece a Espanha, como potencia europeia – como braço direito da Igreja. O conceito espiritual de Cristandade vê-se substituído pelo egoísmo nacionalista de cada Estado (…). Separados da Espanha, e agora num duelo irreparável nós contribuímos não pouco para o desastre total de Westefália. Mas o imperialismo do Conde-Duque [Olivares], lógico sob o aspecto do castelhano, impelira-nos para o único caminho em que a nossa salvação, como pátria, se tornava possível.”
pp. 275-276
“Desde que nos recordemos que em manifestos de responsabilidade, como a Lusitânia liberata, de António de Sousa de Macedo, rutilam os clarões da estranha auréola sebástica, decerto que se apossa logo de nós uma outra compreensão do assunto. Os nossos doutores e panfletários da Restauração são na Europa os precursores das modernas doutrinas nacionalistas, tão vigorosamente sustentadas por eles, que de Suárez e mais comentadores da Contra-Reforma, haviam recebido o conceito tomista do «pacto». Só por este aspecto, o século XVII é o século para cujo estudo eu chamo a atenção dos que pensam.”
pp. 279-280
“Porque se esterilizou então o esforço que parecia restituir-nos o antigo e perdido primado dos «barões assinalados» do Épico [Camões]? Pelo mesmo motivo de que, dissolvido o conceito internacional de Cristandade, nós nos sumíamos na sombra, envoltos no mesmo destino em que a Espanha se afundava, esmagada.”
(…)
“Colhiam-se os frutos de se haver trocado pela quimera insensata da monarquia-ecuménica o prudente e fecundo paralelismo em que Portugal e Castela sabiamente viveram no formidável labor apostólico do século XVI!”
pp. 280-281
… “1640 não representa nem deve representar uma causa de ódio ou de reivindita contra a Espanha. Aos mesmo tempo que nos ensinava a ter confiança nas nossas qualidades criadoras, aponta-nos o caminho a seguir nas relações peninsulares. Corrigenda sanguinolenta ao erro político cometido pela aspiração imperialista tanto da casa de Áustria, como mais atrás, da casa de Avis, fortifica-nos na convicção que a unidade da Península é uma UNIDADE ESPIRITUAL, garantida pela acção concorde de duas soberanias políticas, - a espanhola e a portuguesa. Que fomos nós, a partir da Restauração, embora o mistério do Encoberto se houvesse revelado e se chamasse Portugal-Restaurado? Fomos pelo mesmo conjunto de circunstâncias porque a Espanha nada foi também. Porque, divorciados da obra grandiosa que realizáramos ombro a ombro pelos quatro cantos da terra, nem já nos elevava acima das dissídias mútuas a ideia que nos Lusíadas palpitava: - nos Lusíadas, como bem o marcou Oliveira Martins, «testamento de Espanha», mas duma Espanha que, sendo camoniana, tanto era Castela como Portugal. Ressurgem hoje do conflito trágico das Nações os líneamentos esquecidos do Hispanismo, despertados pela voz juvenil da América maravilhosa.
Congracemo-nos, ajoelhados diante da lembrança das desgraças e pecados recíprocos. O Encoberto, corporizado no milagre sempre vivo da Restauração, é o Encoberto do Quinto-Império pacífico de Espanha e Portugal, fundadores de nacionalidades, pioneiros da única civilização possível. E se ao abraço reconciliatório o demoram ainda susceptibilidades dolorosas, decida-nos, por nosso lado, a memória de D. Luísa de Gusmão, que sendo uma Medina-Sidónia, nem por isso deixou de ser um dos obreiros mais eficazes do Portugal-Restaurado!”
pp. 281-282
António Sardinha, “1640” in À Lareira de Castela, Lisboa, Edições Gama, 1943, pp. 249-282.
in
quinta-feira, novembro 16
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